A uberizada “fiscalização pelo povo” só confirma que a companhia não pretende abrir mão de seus ganhos, preferindo jogar a bomba — ou melhor, o esgoto — precisamente no colo de quem já sofre com o desemprego e a precariedade.
*Por José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista
A máscara cai: transferência de responsabilidade e descaso com a população
A Sabesp, que já lucra há décadas às custas dos moradores do Guarujá e dos turistas que movimentam o comércio local, lançou a campanha “Seja Fiscal da Praia”. É um programa que transfere aos cidadãos a responsabilidade de apontar falhas no sistema de esgoto e na qualidade das praias. O pretexto é “engajar a sociedade” e “agilizar reparos” — mas a realidade é outra: a empresa se exime de suas obrigações mais básicas. Em vez de contratar profissionais capacitados, com salários justos, e realizar inspeções constantes para garantir praias limpas, a Sabesp prefere convocar moradores desempregados ou subempregados para ganhar uns trocados em um aplicativo, como se fosse um “bico”. É o retrato perfeito da uberização do serviço público.
Falhas que adoecem a população e destroem o turismo
O resultado dessa postura é o que se vê nas praias do Guarujá: poluição crônica, esgoto a céu aberto, doenças e contaminação. Não é um problema recente. Quem vive ou visita a cidade sabe o quanto a água das praias varia de cor e de cheiro. Há relatos de infecções gastrointestinais, hepatite A e problemas de pele, especialmente em épocas de maior fluxo de turistas. Por quê? Porque a Sabesp, em vez de cumprir seu dever contratual, permite que, ano após ano, o mar seja alvo de dejetos irregulares.
O impacto na economia local é devastador. O Guarujá depende do turismo, mas quem tem coragem de voltar ao litoral quando vê notícias de praias impróprias e surtos de virose? Peixeiros, ambulantes, pequenos comerciantes, guias, trabalhadores informais — todos acabam pagando a conta. E não é de hoje que essa conta chega com juros: o desemprego na região cresce, empurrando famílias inteiras para a precarização. A tragédia é que a Sabesp provoca esse caos e depois “oferece” uma suposta solução: empregar os próprios desempregados como fiscais de aplicativo, sem carteira assinada, direitos trabalhistas ou estabilidade.
“Seja Fiscal da Praia” ou “Seja Explorável pela Companhia”?
A Sabesp aposta em um discurso de modernização e participação social. Fala-se muito em “sociedade engajada”. Na prática, porém, o que a companhia faz é poupar custos na contratação de equipes técnicas, enquanto mantém seus lucros intactos. Quem denuncia vazamentos ou esgoto escorrendo na areia ganha uma quantia ínfima, insuficiente até para o transporte pelo município. Além disso, não existe transparência sobre o que realmente ocorre após a denúncia. O reparo é feito de forma estrutural ou apenas um remendo provisório? A empresa não explica.
Trata-se de uma versão privatista e neoliberal de resolver problemas de interesse coletivo: joga-se o peso nas costas de quem sofre diretamente, paga-se uma gorjeta para quem denuncia, mas o grosso do lucro segue no bolso dos acionistas. Se, por acaso, aquele vazamento não for notificado no app, a Sabesp se livra do problema dizendo que “ninguém fiscalizou”. No fim das contas, a companhia coloca o povo contra o próprio povo, como se a população fosse culpada pelo caos e precisasse dedurar a si mesma.
Um saneamento que depende de um aplicativo é saneamento?
A resposta é óbvia: não. Se a Sabesp quisesse mesmo resolver o problema do esgoto nas praias, faria um plano robusto de investimentos: equipes em campo diariamente, substituição de tubulações antigas, melhor manutenção das estações de bombeamento, fiscalização intensificada nas ligações clandestinas (que existem em grande parte pela falta de rede formal nos bairros mais periféricos). Em vez disso, a empresa se limita a discursos sobre “soluções inteligentes” e “economia de recursos”, sempre às custas de quem mais precisa.
Privatização disfarçada de “participação social”
A Sabesp é, em essência, uma companhia que atua como se fosse privada, visando lucro acima de tudo — mesmo que seja formalmente de economia mista. A postura da empresa no Guarujá, e em outras cidades litorâneas, é reflexo de um modelo neoliberalizante, em que a busca por rentabilidade supera qualquer compromisso com a qualidade de vida da população. Abusam de discursos modernosos e “tecnológicos”, mas, por trás disso, se esconde a precarização do trabalho, a exploração do desemprego local e o abandono do dever de garantir saneamento pleno.
É uma lógica em que se cobra tarifa alta dos moradores, não se entrega serviço adequado e, ainda por cima, se pede que o cidadão faça o papel de fiscal sem receber quase nada em troca. É o inverso do que seria um serviço público decente, pautado pelo interesse social e pela saúde coletiva.
O que precisamos, de fato?
Para reverter esse quadro, é indispensável:
- Investimentos massivos em infraestrutura: ampliar e modernizar as redes de esgoto, com equipes técnicas constantes no litoral.
- Responsabilização legal e financeira da Sabesp: multas pesadas e intervenção efetiva sempre que houver episódios de poluição — não apenas quando o povo denuncia.
- Revisão do modelo de concessão: o lucro não pode estar acima da saúde pública. É fundamental estabelecer metas rigorosas para garantir praias limpas o ano todo.
- Valorização do trabalhador: chega de bicos e de soluções precárias. Precisamos de contratação de profissionais qualificados e remunerados de forma justa.
- Participação social real: por meio de conselhos de saneamento e debates públicos, não pela uberização de denuncistas.
O Guarujá e as demais cidades litorâneas não merecem ver seu turismo definhar para a Sabesp lucrar. Seus moradores não podem continuar adoecendo por conta de esgoto na areia. Se a Sabesp quer usar a bandeira de empresa séria, que comece cumprindo o que lhe compete: prestar um serviço público de qualidade e garantir a dignidade das pessoas. A tal “fiscalização pelo povo” só confirma que a companhia não pretende abrir mão de seus ganhos, preferindo jogar a bomba — ou melhor, o esgoto — no colo de quem já sofre com o desemprego e a precariedade.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD
Declaração de Fontes:
As informações contidas neste artigo baseiam-se em reportagens sobre a campanha da Sabesp, dados oficiais de balneabilidade divulgados por órgãos ambientais e depoimentos de moradores e comerciantes locais afetados pela má qualidade do saneamento no litoral paulista.
