*José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista
Entre o colapso e a entrega
O que se ouviu na coletiva da SAFiel soa como a voz mansa de quem chega com a promessa de salvação, mas traz na bagagem a sentença de rendição. Disfarçado de projeto “colaborativo e sem interesses políticos ou financeiros”, o discurso dos idealizadores tenta pintar o Corinthians como uma empresa à beira da falência que só se salvaria ao renunciar à própria alma. É a velha lógica de mercado travestida de modernidade: entregar o clube ao capital privado, vender o comando em nome da “gestão eficiente” e, depois, descobrir que o torcedor virou mero consumidor.
Carlos Teixeira, o CEO da SAFiel, disse que “se o clube associativo quiser deter a maioria das ações, manda um sinal de que quer continuar no comando, e isso afasta o capital institucional”. A fala não é inocente. É uma confissão: o que se busca não é o fortalecimento do Corinthians, mas o controle sobre ele. O investidor não quer ajudar — quer mandar. E quem ainda acredita que isso termina bem não aprendeu com as experiências recentes do futebol brasileiro e europeu, onde fundos assumem o comando e o clube vira ativo negociável.
O discurso da crise como chantagem
Eduardo Salusse, o diretor jurídico, disse com gravidade: “Do jeito que está, não sobrevivemos mais um ou dois anos.” É o argumento perfeito para qualquer operação de tomada: criar um clima de pânico e vender a solução como inevitável. A chamada “reforma salvadora” aparece como uma tábua de salvação, quando na verdade é o começo do naufrágio moral. Nenhum balanço auditado foi apresentado, nenhum plano de saneamento foi debatido com a torcida ou com os conselheiros de base. Só a ideia vaga de que “sem SAFiel não há futuro”.
O Corinthians é maior do que seus gestores de ocasião. O problema não é o modelo associativo, e sim a forma como ele foi capturado por feudos políticos e vaidades. Transformar isso em argumento para entregar o clube é o mesmo que culpar a vítima e premiar o agressor. A solução real está em reformar o estatuto, profissionalizar a administração e responsabilizar quem levou o Timão a esta situação — não em vender o símbolo da nação corinthiana para fundos anônimos.
A falácia da governança corporativa
A SAFiel fala em “atrair capital sério e institucional”, mas evita dizer o que esse capital quer em troca: poder absoluto sobre o futebol, liberdade para negociar atletas como mercadoria e autonomia para explorar a marca conforme interesses próprios. O clube, nesse arranjo, vira sócio minoritário da própria história. E os “gestores técnicos” que hoje prometem milagres são os mesmos que amanhã poderão mudar o escudo, o hino ou a sede — tudo em nome da “eficiência”.
Em países como Inglaterra e Espanha, dezenas de clubes foram engolidos por conglomerados estrangeiros. Ganharam momentaneamente fôlego, mas perderam identidade, torcida e, em muitos casos, o próprio nome. No Brasil, a pressa de adotar o modelo SAF já mostra sintomas preocupantes: dívidas transferidas, promessas
descumpridas e torcedores tratados como obstáculos. O Corinthians não pode ser o próximo laboratório dessa experiência.
Resistir é preservar o Corinthians
O anteprojeto do Estatuto, apresentado por Romeu Tuma Júnior, mesmo sendo absurdo, ao menos reconhece que o clube precisa manter 51% das ações e o controle político. É o mínimo para garantir que o Corinthians continue sendo dos corinthianos. A SAFiel, ao reclamar dessa regra, mostra seu verdadeiro rosto: quer o poder sem prestar contas, quer o comando sem a história.
O discurso de “salvação” é uma venda de ilusões. Quem ama o Corinthians deve lutar por transparência, por uma auditoria independente, por reforma administrativa, mas jamais pela entrega do clube ao capital financeiro. A verdadeira modernização começa dentro, com ética e gestão, não com a assinatura de um contrato que transforma paixão em ativo negociável.
O Corinthians sobreviveu à ditadura, a crises políticas e a dívidas muito piores. Vai sobreviver também à tentação da SAF — desde que seus torcedores não aceitem vender a própria camisa em nome de promessas de Excel e PowerPoint.
*José Manoel Ferreira Gonçalves é Engenheiro Civil, Advogado, Jornalista, Cientista Político e Escritor. Pós-doutor em Sustentabilidade e Transportes (Universidade de Lisboa). É fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva, coordenador do Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD) é um dos fundadores do Portal de Notícias Os Inconfidentes, comprometido com pluralidade e engajamento comunitário.
Declaração de Fontes: informações obtidas em coletiva da SAFiel realizada em 28/10/2025, reportagens do portal Meu Timão e entrevistas de Carlos Teixeira, Eduardo Salusse e Maurício Chamati.