QUANDO O PASSADO VOLTA PELA CHAMINÉ

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José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista

Em Santos, toda vez que alguém fala em incinerador, a memória coletiva arrepia. A cidade já convive com a marca de décadas de poluição industrial, danos à saúde e degradação da baía. Portanto, quando projetos de queima de resíduos perigosos voltam à pauta, a sensação não é de modernização, mas de déjà-vu tóxico. Assim, o “fantasma do incinerador” reaparece como símbolo de um modelo ultrapassado, que tenta resolver o lixo queimando saúde pública e futuro ambiental na mesma fogueira.

Ao mesmo tempo, interesses econômicos poderosos vendem a incineração como tecnologia limpa, segura e inevitável. No papel, as chaminés prometem filtros de última geração e monitoramento constante; na prática, a experiência internacional mostra histórico de falhas, emissões acima do previsto e dificuldade real de controle em tempo integral. Dessa forma, a população que vive no entorno — especialmente bairros populares e comunidades já vulneráveis — percebe que pagará a conta em forma de fumaça, partículas e doenças respiratórias.

Incinerador Santos Fantasma Tóxico

A discussão sobre incineradores sempre tenta se ancorar em números frios: toneladas de resíduos tratados, energia gerada, empregos criados. No entanto, Santos não é um laboratório abstrato; é uma cidade adensada, cercada de morros, manguezais, porto, indústrias e uma baía que funciona como bacia de acumulação de tudo que o continente despeja. Assim, qualquer chaminé emitindo dioxinas, furanos e metais pesados não se dilui no ar como teoria, mas se deposita em telhados, caixas d’água, alimentos e corpos de gente real.

Além disso, incineradores costumam estimular uma dinâmica perversa: em vez de reduzir o lixo na origem, reciclar e compostar, o sistema passa a “precisar” de resíduos para alimentar o forno. Portanto, a cidade corre o risco de ver a política de resíduos subordinada à fome tecnológica de queima, e não à lógica de economia circular. Dessa maneira, o que se vende como solução definitiva vira amarra estrutural, que prende o município a um caminho caro, poluente e difícil de reverter.

Incinerador Santos Fantasma Tóxico

Enquanto isso, moradores, coletivos ambientais e especialistas em saúde pública levantam um ponto simples: se existem alternativas mais seguras e modernas, por que insistir na opção de maior risco? Hoje, cidades no mundo inteiro investem em triagem, reciclagem de alto nível, logística reversa, compostagem e redução na fonte. Assim, cada real gasto em incinerador deixa de ir para cadeias produtivas mais limpas, geradoras de emprego local e de menor impacto sanitário.

Ao mesmo tempo, a lógica política tenta empurrar a decisão como questão técnica, quase inevitável. Fala-se em laudos, pareceres, cálculos de dispersão. No entanto, quem vive na área sabe que modelos de computador não pegam vento canalizado entre morros, inversões térmicas extremas nem a soma de todas as fontes de poluição que já castigam a região. Portanto, tratar Santos como página em branco ignora uma história pesada de contaminação, enchentes químicas, acidentes portuários e adoecimento silencioso.

Quem respira não é consultado

No fim, o fantasma do incinerador volta a assombrar Santos porque revela um dilema profundo: quem manda no território, a planilha ou o pulmão? Quando o debate se reduz a “viabilidade econômica”, a cidade aceita que alguns lucrem enquanto outros respiram o custo. Assim, a única saída responsável passa por radicalizar transparência, participação popular e prioridade absoluta à saúde coletiva.

Santos já carregou poluição suficiente para várias gerações. Portanto, repetir modelos que o mundo desenvolvido começa a abandonar não parece visão de futuro, mas apego ao atraso. Se o fantasma do incinerador insiste em rondar a cidade, cabe à sociedade civil, às universidades e às instituições de controle mostrar que desenvolvimento de verdade não se mede em megawatts queimando lixo, e sim em anos de vida preservados, praias limpas, ar respirável e crianças que crescem sem carregar toxinas na corrente sanguínea.

*José Manoel Ferreira Gonçalves é Engenheiro Civil, Advogado, Jornalista, Cientista Político e Escritor. Pós-doutor em Sustentabilidade e Transportes (Universidade de Lisboa). É fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva, coordenador do Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD) é um dos fundadores do Portal de Notícias Os Inconfidentes, comprometido com pluralidade e engajamento comunitário.

Declaração de fontes:
As informações deste artigo se baseiam em relatórios e diretrizes da Organização Mundial da Saúde, em documentos do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente sobre resíduos perigosos, em estudos da Fiocruz sobre impactos da incineração na saúde, em laudos e notas técnicas de órgãos ambientais brasileiros como a CETESB, além de pesquisas acadêmicas de universidades como USP e Unifesp sobre poluição atmosférica e riscos ambientais na região de Santos.

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