*Por José Manoel Ferreira Gonçalves
Na obra A Rebelião das Massas (1930), o filósofo espanhol José Ortega y Gasset desvela uma tensão estrutural que molda sociedades modernas: a dinâmica entre minorias (homens-especiais) e massas (homens-massa). Para ele, não se trata de divisão econômica ou hierárquica, mas de posturas existenciais que definem o rumo da civilização.
O Homem-Especial: A Vanguarda da Excelência
O homem-especial é aquele que se impõe pela exigência consigo mesmo. Guiado por valores como disciplina, curiosidade intelectual e responsabilidade, ele não se contenta com o estabelecido. Ortega o descreve como um “aristocrata do esforço”, alguém que eleva padrões culturais, científicos ou éticos, assumindo riscos para transcender a mediocridade. Sua existência é um ato de rebeldia criadora, pois questiona dogmas e abre caminhos novos.
O Homem-Massa: O Triunfo da Complacência
Em oposição, o homem-massa é definido pela satisfação passiva. Não é pobreza material que o caracteriza, mas uma pobreza de ambição. Ele se apega ao convencional, rejeita críticas e glorifica o imediato — “vive como todos vivem, sem exigir-se”. Para Ortega, essa figura é produto da modernidade: o acesso a direitos e tecnologias criou uma ilusão de autossuficiência, fazendo-o crer que não deve nada à tradição ou ao esforço alheio.
O Conflito: Quando a Massa Usurpa o Lugar da Minoria
A crise surge quando o homem-massa, numericamente dominante, rejeita a autoridade das minorias. Ele invade espaços — políticos, culturais, técnicos — sem preparo ou humildade, tratando opiniões como fatos e simplificando complexidades. Ortega alerta: essa “hipertrofia do eu” gera sociedades estagnadas, onde a crítica é substituída pelo populismo e a inovação pelo conformismo.
Atualidade: Um Espelho da Era Digital
Hoje, a dicotomia orteguiana ecoa em fenômenos como a polarização nas redes sociais (um lugar em que todos se acham especialistas) e a banalização do conhecimento. A cultura do like e do copy-paste exalta o homem-massa, que consome informações sem filtrá-las e repete discursos sem interrogá-los. A saída? Ortega sugere que apenas a restauração do homem-especial — não como elite isolada, mas como modelo de aspiração coletiva — pode reverter a decadência.
Em suma, Ortega y Gasset não propõe um retorno ao passado, mas um equilíbrio tenso: reconhecer que o progresso exige liderança consciente e massa crítica, não apenas crítica da massa.
A relação entre líderes como Jair Bolsonaro, Javier Milei e Donald Trump, entre vários outros do mesmo jaez, com a teoria de Ortega y Gasset sobre o “homem-massa” e as minorias é complexa, mas pode ser analisada à luz dos conceitos centrais do filósofo. Há um ponto crucial: a tensão entre a ascensão de figuras que emergem das massas e ocupam posições de poder tradicionalmente associadas a “homens especiais”, gerando crises institucionais e culturais.
Tentemos uma análise mais estruturada:
1. O Paradoxo do Líder-Massa: Quando a Mediocridade Assume o Poder
Para Ortega y Gasset, o homem-massa é caracterizado pela complacência, falta de exigência consigo mesmo e rejeição a normas superiores. No entanto, líderes como os citados representam um paradoxo: embora ocupem posições de liderança (teoricamente reservadas a “homens especiais”), suas estratégias políticas via de regra espelham a mentalidade da massa. Eles se apresentam como “antissistema”, rejeitam expertise técnica e simplificam debates complexos para atrair apoio popular, alinhando-se ao perfil do homem-massa que despreza hierarquias intelectuais e tradições.
Ortega alertava que a invasão das massas nos espaços de decisão levaria à mediocridade institucionalizada, pois o homem-massa, ao assumir o poder, prioriza satisfação imediata sobre projetos de longo prazo. Isso se reflete, por exemplo, em políticas baseadas em polarização emocional (como ataques a instituições científicas ou deslegitimação da imprensa), que ignoram a complexidade dos problemas sociais 12.
2. A Exploração da “Revolta das Massas” como Estratégia Política
Ortega descreve o homem-massa como aquele que exige direitos sem assumir responsabilidades e se sente “autossuficiente” graças aos avanços técnicos da modernidade. Líderes populistas capitalizam essa mentalidade ao promover narrativas de vitimização (“o sistema nos oprime”) e soluções simplistas (“eu resolvo tudo sozinho”), alimentando a ilusão de que problemas estruturais podem ser resolvidos sem esforço coletivo.
Trump, por exemplo, usou slogans como “Make America Great Again” para apelar a um saudosismo que ignora a complexidade histórica, enquanto Bolsonaro e Milei atacaram consensos científicos (como mudanças climáticas ou políticas de saúde) sob a alegação de “defender o povo contra elites”. Essa retórica ecoa a crítica de Ortega sobre a banalização do conhecimento e a substituição da razão por emocionalidade tribal.
3. A Crise das Elites e o Vácuo de Liderança
Ortega argumenta que a decadência das elites tradicionais abre espaço para a ascensão de líderes populistas. Quando as minorias qualificadas (intelectuais, técnicos, artistas) falham em exercer liderança moral, as massas buscam figuras que espelhem sua própria mediocridade. No Brasil e nos EUA, por exemplo, a erosão da credibilidade de partidos tradicionais e a percepção de corrupção nas instituições criaram um vácuo preenchido por outsiders que se vendem como “representantes do povo contra o sistema”.
Esses líderes, no entanto, não são “homens especiais” no sentido orteguiano. Pelo contrário: são produtos da massa, pois sua autoridade deriva da capacidade de mobilizar ressentimentos e simplificar realidades, não de propostas baseadas em excelência ou profundidade intelectual.
4. Consequências: Polarização e Degradação Democrática
A ascensão desses líderes está ligada ao que Ortega chamou de “tirania social das massas”, que se dá quando o debate público é substituído por choque de tribalismos. A polarização exacerbada (como a guerra cultural entre esquerda e direita) reflete a incapacidade do homem-massa de lidar com nuances, preferindo ações diretas (como ataques a opositores ou judicialização (ou mesmo militarização) da política) em vez de diálogo.
Além disso, a erosão de instituições (como o STF no Brasil ou o Congresso nos EUA) ocorre porque líderes-massa as veem como obstáculos à sua agenda, não como pilares civilizatórios. Ortega já alertava que, sem elites capazes de moderar os excessos das massas, a democracia degenera em populismo.
5. Conclusão: Uma Crise de Civilização
Sim, é pertinente associar esses líderes à rebelião das massas descrita por Ortega. Eles não são “homens especiais”, mas sintomas de uma sociedade na qual a massa usurpou o lugar da minoria. Suas lideranças instauram crises porque institucionalizam a mediocridade, substituindo projetos coletivos por personalismos e substituindo a razão por identitarismos.
A solução, segundo Ortega, residiria na reconstrução de elites comprometidas com a excelência e na educação que forme cidadãos críticos. Enquanto isso não ocorrer, a tensão entre massas e minorias continuará gerando líderes que, longe de resolver crises, as aprofundam ao transformar a política em espetáculo.
6. O Fenômeno em Microescala: Entidades da sociedade civil
A dinâmica entre homem-especial e homem-massa não se restringe à esfera nacional. Em organizações menores, como, entre muitas outras, entidades de classe profissional, a lógica se repete: assembleias dominadas por discursos emocionais, onde membros desprezam regulamentos técnicos em nome de uma “vontade geral” simplificada. A autoridade de especialistas é deslegitimada, e decisões passam a ser tomadas por majoritários que, nas palavras de Ortega, “não se exigem, mas exigem”.
Nessas microesferas, a crise orteguiana se manifesta como erosão da autoridade competente, substituída por uma gestão que confunde popularidade com eficácia. A saída, seguindo o filósofo, exigiria a formação de novas minorias dentro dessas organizações — líderes que, mesmo em pequena escala, ousem exigir mais da coletividade do que ela imagina ser capaz. Seria este o caso da EngD?
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD