O risco existencial da SAF no Corinthians

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José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista

Futebol profissional com lógica empresarial

Tá a tributação pode cair até 7% sobre a receita, mas com a desvinculação do torcedor a receita pode cair muito mais que isso, e daí? A transformação de clubes em Sociedade Anônima do Futebol (SAF) vem sendo vendida como solução mágica para problemas financeiros históricos. A promessa é clara: menos tributos, mais governança, acesso facilitado ao capital. Mas, sob a superfície dos balanços e das análises de rentabilidade, esconde-se uma mutação profunda — e potencialmente trágica — no significado cultural e institucional do clube, que refletem diretamente nestes balanços.

No caso de um clube como o Corinthians, cuja identidade está visceralmente ligada ao seu caráter popular, comunitário e associativo, a conversão em SAF não é apenas uma mudança de natureza jurídica: é um salto estrutural em direção ao enfraquecimento de sua alma.

Perda de controle e subordinação ao ROI

Ao abrir mão do controle majoritário de seu departamento de futebol, o Corinthians entrega à lógica do investidor um patrimônio simbólico construído por gerações. A SAF, por definição, visa retorno sobre o investimento (ROI). Nesse contexto, as decisões esportivas deixam de obedecer a critérios históricos, técnicos ou afetivos: passam a responder a metas trimestrais, à valorização de ativos (jogadores), à liquidez de mercado.

Com isso, o clube corre o risco de:

  • vender atletas com pressa, para gerar caixa imediato;
  • negligenciar projetos de base e compromissos de longo prazo;
  • perder a identidade tática e cultural em nome de resultados rápidos;
  • afastar torcedores, que se tornam apenas clientes de uma marca.

Para clubes de massa, essa transição pode significar não só alienação, mas desagregação do laço comunitário que sustenta sua existência.

A lógica predatória do capital financeiro

Transformado em ativo, o clube entra no radar de fundos, conglomerados e investidores sem qualquer vínculo com sua história. A SAF se torna um produto de portfólio: algo que pode ser comprado, “reformado” e revendido.

Nesse cenário, há risco concreto de práticas como:

  • empréstimos abusivos que comprometem receitas futuras;
  • engenharia financeira opaca, com ganhos de curto prazo para acionistas;
  • revenda da SAF a grupos estrangeiros alheios à cultura corinthiana.

Em vez de casa do povo, o clube pode virar um shopping center do entretenimento — uma entidade sem lugar, desprovida de sentido coletivo, no estilo dos “não-lugares” descritos por Marc Augé ou Emir Sader. A camisa, o hino, o estádio passam a ser “ativos” e não emblemas de pertencimento.

SAF também quebra. O clube, não.

A associação civil que sustenta o Corinthians é, por sua natureza jurídica e cultural, mais resiliente. Pode enfrentar dívidas, crises e erros administrativos, mas preserva sua essência comunitária. Já a SAF é empresa: pode falir, ser absorvida, sofrer takeover hostil.

Com isso, podem ocorrer situações como:

  • recuperação judicial e venda de ativos estratégicos (jogadores, CT, estádio);
  • perda de autonomia esportiva por ingerência de investidores;
  • extinção do departamento de futebol profissional, restando ao clube apenas atividades sociais.

É fundamental compreender que, mesmo que o “Clube” sobreviva no papel, sua expressão no futebol — aquilo que o povo vê, canta e sofre — pode desaparecer sob o peso de um balanço mal resolvido.

Qual o preço de uma alma?

O Corinthians nasceu do povo, cresceu como resistência cultural, virou símbolo de identidade coletiva e canal de expressão popular. Reduzi-lo a ativo financeiro é renegar essa história. Se a SAF fosse apenas um modelo de governança com mecanismos claros de proteção institucional e cultural, o debate seria outro. Mas, do jeito que está, trata-se de um modelo que ameaça amputar a alma do clube em nome de um suposto “futuro sustentável”.

Nesse processo, o Corinthians pode até pagar menos impostos — mas pagará o preço mais alto: o da perda do seu sentido.

*José Manoel Ferreira Gonçalves é Engenheiro Civil, Advogado, Jornalista, Cientista Político e Escritor. Pós-doutor em Sustentabilidade e Transportes (Universidade de Lisboa). É fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva, coordenador do Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD) é um dos fundadores do Portal de Notícias Os Inconfidentes, comprometido com pluralidade e engajamento comunitário.

Declaração de Fontes:
“As informações contidas neste artigo foram obtidas a partir de análises jurídicas da Lei da SAF, estudos do IREE, entrevistas do economista Cesar Grafietti, publicações da ESPN e reportagens da Folha de S.Paulo sobre modelos societários no futebol brasileiro.”

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