*Por José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista
No Guarujá, o esgoto que transborda em um bairro de luxo como o Jardim Acapulco não é apenas um crime ambiental. É o símbolo fétido e visível de um projeto político que apodrece o conceito de bem-estar social. Este vazamento expõe a anatomia de uma falha em cadeia: começa na omissão de uma prefeitura que, no passado, aprovou um loteamento sem garantir infraestrutura de saneamento perene; passa pela recusa de uma Sabesp recém-privatizada, que trocou a responsabilidade pública pela lógica predatória do lucro; e culmina na figura do arquiteto deste desmonte: o governador Tarcísio de Freitas.
A negligência evidenciada em Guarujá vai muito além do desconforto momentâneo. O despejo constante de esgoto sem tratamento afeta diretamente o meio ambiente: contamina o solo, os lençóis freáticos e os cursos d’água, além de ameaçar a vida marinha nas praias vizinhas. É um crime socioambiental silencioso, que não estampa manchetes todos os dias mas envenena aos poucos a comunidade local. Os riscos sanitários também são alarmantes – proliferação de doenças gastrointestinais, verminoses e viroses causadas pela água contaminada já são uma realidade temida pelos moradores. Trata-se de um atentado à saúde pública que tende a se agravar enquanto autoridades e empresa fazem jogo de empurra.
A denúncia, corajosamente protocolada pela Associação Guarujá Viva – Água Viva, não encontrou eco em uma empresa que agora responde a acionistas, não a cidadãos. A Sabesp, blindada em sua nova realidade corporativa, simplesmente lavou as mãos, alegando que a rede interna do loteamento não é de sua competência. É a oficialização do abandono. Em outros tempos, a Sabesp, como entidade pública, teria a obrigação de intermediar, fiscalizar e buscar uma solução. Hoje, ela apenas calcula o custo-benefício e, se não há lucro na planilha, há esgoto na rua.
Esta é a essência da privatização sob Tarcísio: um negócio onde o bônus é privado e o ônus é público — ou, neste caso, um problema exclusivo dos moradores que pagam seus impostos. A venda da Sabesp foi justificada com promessas de eficiência e universalização, um discurso que agora se revela uma fraude. O que vemos é a extração máxima de valor das áreas já lucrativas, enquanto os problemas complexos, que exigem investimento e planejamento, são ignorados. O lucro da Sabesp, arrancado da pouca riqueza que o trabalhador consegue reter após a exploração da mais-valia, agora serve para engordar dividendos, e não para garantir um direito básico como o saneamento.
Não se pode analisar este caso sem enquadrá-lo no projeto de poder do atual governador. Tarcísio de Freitas, que se orgulha de sua afinidade com o ultraliberalismo destrutivo de Javier Milei e com o populismo antidemocrático de Donald Trump, governa para o mercado, não para as pessoas. Sua administração opera na contramão dos interesses históricos de São Paulo e do Brasil, tratando serviços essenciais como mercadorias e cidadãos como meros consumidores. A saúde pública, ameaçada por doenças de veiculação hídrica, e a degradação ambiental são apenas “externalidades” no balanço de seu governo. Ele mata pobres e pretos com sua política de segurança enquanto, simultaneamente, os adoece com sua política de saneamento.
O descaso com o esgoto do Guarujá é, portanto, um ato político. É a consequência direta de uma gestão que despreza o social e reverencia o capital. O poder público, sob sua liderança, tornou-se cúmplice da negligência. As agências reguladoras, que deveriam fiscalizar e punir, parecem intimidadas ou alinhadas a este mesmo projeto.
A Associação Guarujá Viva está correta em buscar a via judicial. Mas a cobrança não pode parar aí. É preciso que a sociedade civil e as instituições democráticas entendam a gravidade do que está em curso. A postura do governador Tarcísio de Freitas não representa um simples ato de má gestão, mas um descumprimento contínuo de seus deveres fundamentais, colocando em risco a saúde e a dignidade da população em nome de uma ideologia.
Se esta atitude de deliberado abandono social não for revertida imediatamente, não restará uma alternativa senão estudar, com a seriedade e a urgência que o caso exige, os caminhos legais para iniciar uma campanha de impeachment. Um governador que conscientemente desmantela as estruturas de proteção social e viola o direito à saúde e a um meio ambiente equilibrado não pode continuar no poder. O esgoto que corre no Jardim Acapulco é a prova material de sua inaptidão para governar para todos.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva. Em 2018, fundou e passou a coordenar o Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD), criado a partir da convicção de que a engenharia, como base material do desenvolvimento nacional, deve estar a serviço da democracia, da ética e da justiça social.
Declaração de Fontes: As informações contidas neste artigo foram obtidas a partir de reportagens do jornal A Tribuna, documentos da Associação Guarujá Viva – Água Viva, análises sobre a privatização da Sabesp veiculadas na mídia nacional e apuração em redes e fontes abertas sobre o histórico de loteamentos no Guarujá e as políticas do governo estadual.