Mudança de regras não

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*Eng. José Manoel Ferreira Gonçalves
Membro do Conselho Deliberativo da EngD

1. Sobre a “mudança de regras durante o jogo” e a revisão estatutária

A alegação de que a atualização do estatuto estava prevista desde a fundação não invalida a crítica de que alterações específicas à reeleição, em meio a um mandato, configuram casuísmo político. Ainda que formalmente legal, a revisão de normas deve priorizar o interesse coletivo, não o benefício de indivíduos em exercício. O exemplo recente da CBF, que alterou seu estatuto para permitir três mandatos consecutivos ao presidente Ednaldo Rodrigues, gerou questionamentos éticos e jurídicos, mesmo seguindo procedimentos legais. Como destacou Napoleão Bernardes Neto, a reeleição no Brasil é historicamente marcada por conflitos entre formalidade e moralidade política, pois “a busca por vantagens pessoais muitas vezes se sobrepõe ao bem público”.

A Assembleia, embora prevista no estatuto, não pode ser usada como escudo para legitimar mudanças que perpetuem grupos no poder. Se o objetivo é atualizar normas, por que a ênfase recai apenas na reeleição do atual presidente, e não em outras reformas estruturais? A crítica não é ao processo em si, mas à seletividade da pauta, que sugere priorização de interesses particulares.

2. A questão do “descompromisso com quem contribuiu”

A defesa da reeleição como reconhecimento a “quem mais contribuiu” ignora dois riscos:

  • Personalização do poder: Líderes históricos devem ser valorizados, mas instituições sólidas dependem de renovação, não de perpetuação. O PSDB, após a reeleição de FHC, viu sua relevância minguar justamente por associar sua identidade a uma figura individual, em detrimento de projetos coletivos.
  • Deslegitimação de novas lideranças: A narrativa de que apenas os “protagonistas do passado” são capazes de conduzir a entidade desconsidera a necessidade de inclusão de novas vozes, essencial para a vitalidade democrática.

3. O paralelo com a CBF e a crise de governança

O caso da CBF é emblemático: a mudança estatutária para permitir três mandatos ao presidente Ednaldo Rodrigues ocorreu em meio a crises internas, atrasos em pagamentos e questionamentos jurídicos sobre a legalidade de seu mandato. A justificativa de “alinhamento com a FIFA” não apagou a percepção de que a medida visava consolidar um grupo no poder. Da mesma forma, na EngD, a defesa da reeleição não pode se esconder atrás de formalismos se o contexto revela conflitos de interesse.

4. A contradição entre democracia e continuísmo

A soberania das assembleias é inegável, mas a democracia não se resume a votos majoritários. Como alertou Alexis de Tocqueville, a “tirania da maioria” pode corroer instituições se não houver freios ao personalismo. No caso brasileiro, a reeleição presidencial, instituída em 1997, foi reconhecida até por FHC como um erro, por incentivar práticas eleitoreiras e adiar reformas necessárias. Se a EngD busca inspiração em modelos internacionais, deve observar que até a Alemanha, citada como exemplo de estabilidade, limita mandatos de chanceleres após 16 anos de Angela Merkel — um prazo incomparavelmente maior que o proposto para uma entidade civil.

5. Proposta para um debate construtivo

Em vez de polarizar entre “continuístas” e “opositores”, sugere-se:

  1. Transparência na pauta: Se a assembleia visa reformas, que todas as alterações propostas sejam debatidas abertamente, sem esse foco na reeleição.
  2. Limites temporais claros: Adotar um modelo de mandato único estendido (ex.: 5 anos), como proposto por FHC em seu mea culpa, eliminando a tentação de políticas plebiscitárias.
  3. Critérios meritocráticos: Se a reeleição for mantida, vincule-a a metas claras e avaliações de desempenho, não a lealdades pessoais, ou loas fraternas.

A defesa da não reeleição não pode ser reduzida a uma “perseguição” ou “casuísmo”. Trata-se de uma discussão sobre ética institucional e futuro coletivo. Como sentencia Norberto Bobbio, a democracia exige regras que transcendam indivíduos, garantindo que o poder circule e se renove. A EngD tem a chance de evitar os erros da CBF e da política nacional: basta priorizar princípios sobre conveniências.

*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD

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