MPF investiga marinas no Canal de Bertioga

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*Por José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista

O Ministério Público Federal (MPF) abriu um procedimento para investigar possíveis ocupações e construções irregulares no Canal de Bertioga, litoral de São Paulo, que estariam privatizando ilegalmente áreas públicas federais. Essas ocupações envolvem marinas ligadas a condomínios de luxo que, segundo denúncias, impedem o acesso de pescadores tradicionais e colocam em risco o meio ambiente local. Na prática, as margens e até trechos do leito do canal – bens da União de jurisdição federal – estariam sendo apropriados como “quintal” de mansões, em afronta às leis ambientais e ao interesse público. De acordo com reportagens investigativas, as nove marinas existentes (duas delas pertencentes a condomínios fechados de alto padrão) praticamente lotearam o viário aquático do canal, interferindo em uma área que, por abrigar manguezais, é considerada Área de Preservação Permanente (APP) em toda sua extensão, conforme definido no Código Florestal. Diante disso, o procurador da República responsável pelo caso, Antonio José D. Molina Daloia, solicitou imagens, documentos e informações para embasar a apuração das supostas irregularidades, indicando a seriedade com que o órgão trata a situação.

Impactos ambientais em foco

As denúncias sobre as marinas do Canal de Bertioga acenderam um alerta para os impactos ambientais das ocupações irregulares na região. O canal é margeado por extensos manguezais, ecossistemas riquíssimos que funcionam como berçários naturais de várias espécies marinhas. Nesses ambientes de transição entre rios e mar, diversas espécies de peixes, crustáceos e moluscos se reproduzem e encontram alimento, aproveitando as águas calmas e ricas em matéria orgânica. A abundante vida aquática dos mangues também sustenta populações de aves e mamíferos que dependem dessa cadeia alimentar. Entretanto, anos de ocupação desordenada já resultam em declínio visível da biodiversidade no canal. Pescadores locais relatam diminuição nas capturas e no avistamento de espécies antes comuns, um indicativo dos danos ecológicos acumulados.

Um dos problemas observados é a destruição da vegetação de mangue e de restinga para dar lugar a edificações e infraestrutura náutica. Em frente a alguns imóveis de alto padrão foram flagradas dragas realizando o aprofundamento do leito do canal para facilitar a atracação de lanchas e iates de grande porte. Essa dragagem e a movimentação excessiva de embarcações revolvem sedimentos e podem alterar a qualidade da água, prejudicando organismos aquáticos sensíveis. Além disso, há indícios de aterramento de áreas de mangue – aplainando e cobrindo o solo lodoso com materiais de construção – para expandir quintais e estacionamentos de barcos privados. Esse aterramento leva à perda direta de habitat: árvores de mangue são removidas ou sufocadas, eliminando áreas de refúgio e alimentação de peixes e crustáceos juvenis.

Adicionalmente, identificou-se postos de combustível construídos sobre o manguezal, destinados ao abastecimento de embarcações de recreio. A presença desses postos dentro de uma área sensível gera preocupação quanto ao risco de vazamento de óleo e combustível, o que poderia contaminar a água e o solo do mangue, causando mortandade de organismos e poluição de longo prazo. Mesmo que os responsáveis aleguem possuírem autorizações ou compensações ambientais para tais estruturas, sua existência em pleno manguezal é vista por mim e demais especialistas como incompatível com a conservação do ecossistema.

Outro impacto ambiental crítico decorre da intensa movimentação de lanchas e motos aquáticas em alta velocidade na região. Sem uma fiscalização efetiva das autoridades náuticas, muitas embarcações navegam acima do limite permitido no canal. O rastro dessas lanchas gera fortes marolas (ondas) que, de um lado, colocam em risco as pequenas canoas de pescadores artesanais e, de outro, agravam a erosão das margens do canal. As ondas constantes batendo nas bordas de mangue acabam por destruir a vegetação ciliar, arrancando ou inclinando as árvores – várias raízes de mangue estão agora expostas e o solo, instável. Esse processo erosivo já é perceptível a olho nu e inclusive ameaça a estabilidade de infraestrutura próxima, como trechos da rodovia SP-061 (Guarujá-Bertioga) que margeiam o canal. Ou seja, o desequilíbrio ambiental causado pelas ocupações irregulares e navegação descontrolada não só degrada o ecossistema, mas também compromete a segurança pública e a estrutura viária.

Em suma, os danos ambientais potenciais incluem: perda de biodiversidade aquática e terrestre, destruição de áreas de mangue (um ecossistema-chave do bioma Mata Atlântica), poluição hídrica por sedimentos e óleo, e processos de erosão que alteram a geomorfologia costeira. Os manguezais são protegidos por lei exatamente devido à sua importância ecológica – eles estabilizam o solo costeiro, filtram poluentes, servem de berçário e ainda estocam carbono, ajudando a mitigar mudanças climáticas. Portanto, a degradação desse ambiente no Canal de Bertioga tem repercussões locais e globais, afetando desde a sobrevivência dos pescadores artesanais que dependem do mangue até a saúde climática do planeta. Esses fatos realçam a gravidade das irregularidades sob investigação e reforçam a urgência de medidas corretivas.

Histórico das irregularidades na região

As ocupações irregulares nas margens do Canal de Bertioga não surgiram do dia para a noite – elas são o resultado de anos de expansão imobiliária desordenada e tolerância (quando não omissão) das autoridades competentes. Há registros de que, desde pelo menos a década de 1990, áreas de manguezal na região vêm sendo gradativamente ocupadas por estruturas privadas – primeiro barracos e atracadouros simples de comunidades locais e depois, em escala muito maior, garagens náuticas, clubes e residências de alto padrão pertencentes a outsiders endinheirados. Esse histórico de invasões acompanha um padrão visto em outros municípios litorâneos: a pressão por ocupar áreas cênicas e valorizadas frequentemente resulta em grilagem de terrenos públicos e supressão ilegal de vegetação, à espera de uma posterior regularização fundiária ou anistia ambiental.

No caso específico do Canal de Bertioga, os conflitos entre moradores tradicionais e novos ocupantes já ocorrem há tempos. Pescadores e comunidades caiçaras que habitam às margens dos mangues relatam uma fiscalização rigorosa e punitiva sobre eles, contrastando com a aparente permissividade dada aos empreendimentos de luxo. Informações colhidas por entidades locais e pela imprensa revelam uma clara falta de isonomia: enquanto famílias de pescadores são multadas ou impedidas de reformar seus modestos casebres ou consertar pequenos trapiches de madeira, os proprietários de marinas e mansões vizinhas ergueram imponentes residências e píeres de concreto sobre o mangue, sem serem incomodados pela fiscalização. Diversos relatos citam que esses donos de imóveis chegaram a delimitar áreas inteiras do espaço aquático com boias e cordas, apropriando-se de fato de trechos do canal para uso exclusivo. Em alguns pontos, há guaritas de segurança privada instaladas na margem, de onde vigias contratados afastam qualquer pescador ou morador tradicional que se aproxime, consolidando essa privatização informal. Esse cenário configura uma inversão de papéis alarmante: quem deveria ser fiscalizado age livremente, enquanto os verdadeiros habitantes tradicionais são tratados como invasores em sua própria terra.

Ao longo dos anos, algumas tentativas de coibir os abusos ocorreram, embora de forma pontual. Por exemplo, na região existia um estabelecimento de lazer noturno – uma espécie de “balada” construída em área de mangue – que chegou a funcionar durante meses com música alta noite adentro, literalmente “sob as barbas” das autoridades ambientais sem interdição imediata. Somente após pressão da comunidade e uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) é que essa casa noturna irregular foi finalmente fechada. Ainda assim, sua estrutura física permanece erguida no local, como um símbolo do descumprimento ou cumprimento incompleto das leis: embora a atividade tenha cessado, o dano ao mangue não foi totalmente desfeito, e a construção abandonada continua destoando da paisagem natural protegida. Casos como esse ilustram a dificuldade histórica em fazer valer as decisões judiciais e administrativas na região, especialmente quando envolvem demolir obras já consolidadas de grande porte.

Nos últimos anos, entretanto, a questão ganhou mais visibilidade e respostas mais contundentes das autoridades. Reportagens investigativas – como a série “Milionários de Mangue” produzida pelo Diário do Litoral – trouxeram à tona vídeos, fotos e documentos comprovando os supostos abusos ambientais e fundiários no Canal de Bertioga. Essa exposição midiática serviu de base para que organizações da sociedade civil, a exemplo da Associação Guarujá Viva (AGUAVIVA) e o Instituto MARAMAR, articulassem denúncias formais aos órgãos públicos. Uma reunião ocorrida em 22 de outubro de 2024 entre representantes dessas entidades e o MPF foi decisiva para que se iniciasse oficialmente o inquérito sobre as marinas irregulares. Nessa ocasião, os ambientalistas apresentaram suas preocupações e dados sobre a ocupação privada das margens do canal, descrevendo como isso tem impactado negativamente a pesca artesanal e a conservação do manguezal. O procurador da República então encorajou o envio de provas adicionais e garantiu que encaminharia o caso aos órgãos competentes (como a Secretaria do Patrimônio da União, Marinha, IBAMA, entre outros) para averiguações técnicas.

Paralelamente, órgãos federais de gestão de patrimônio e ambientais começaram a agir. A Secretaria de Patrimônio da União (SPU), responsável por zelar pelos bens da União (como o leito de rios e áreas de marinha), iniciou um processo de notificação contra as marinas no segundo semestre de 2024. Em 30 de setembro daquele ano, a SPU expediu notificações formais às direções das marinas – incluindo as localizadas dentro dos condomínios de luxo – exigindo esclarecimentos sobre a titularidade e autorização das ocupações. O coordenador regional da SPU, Emerson Santos, revelou que pelo menos seis ações demolitórias já foram emitidas contraestruturas comprovadamente irregulares nas margens do Canal. Essas ações têm por objetivo remover decks, píeres e edificações construídos sem autorização em área pública, seguindo os trâmites administrativos e judiciais cabíveis. O próprio coordenador destacou que muitas marinas ampliaram seus espaços além do permitido, e chegou a cobrar da Prefeitura de Guarujá uma fiscalização mais efetiva para prevenir novas ocupações ilegais, dado que parte dessas estruturas só é acessível por terra, dentro do município. Essa pressão sobre a administração municipal evidenciou uma falha histórica de fiscalização local, já que caberia à prefeitura coibir construções irregulares no uso do solo urbano e em áreas de preservação, em apoio aos órgãos estaduais e federais.

Em resumo, o histórico na região combina permissividade prolongada, ações corretivas tardias e agora uma mobilização mais forte para enfrentar o problema. A investigação atual do MPF insere-se nesse contexto como um passo decisivo para levantar todos os fatos, responsabilizar os infratores e, espera-se, restaurar a legalidade ambiental e fundiária no Canal de Bertioga. Contudo, reverter décadas de ocupações ilegais exigirá não apenas ações isoladas, mas uma vontade política contínua e um esforço coordenado entre União, Estado e Município.

Implicações jurídicas e crimes ambientais

As construções e intervenções realizadas de forma irregular no Canal de Bertioga apresentam diversas implicações jurídicas, abrangendo desde ilícitos administrativos até possíveis crimes ambientais e contra o patrimônio público. Primeiramente, é importante destacar que os manguezais e suas faixas marginais são protegidos rigorosamente pela legislação brasileira. O Código Florestal (Lei Federal n.º 12.651/2012) define os manguezais como Áreas de Preservação Permanente (APPs), onde a vegetação nativa deve ser mantida para garantir funções ecológicas essenciais (proteção do solo, estabilidade costeira, manutenção da biodiversidade, ciclo hídrico, etc.). Dessa forma, qualquer supressão de vegetação de mangue ou construção dentro desse ecossistema sem autorização expressa configura violação grave. A lei somente admite intervenções em APPs em hipóteses restritas, como utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental (por exemplo, abertura de pequenas vias de acesso rústicas, instalações de apoio à pesquisa científica, projetos de recuperação ambiental, etc.). Construções voltadas ao lazer privado, como píeres particulares, postos de combustível recreativo ou clubes, não se enquadram nessas exceções e, portanto, são presumidamente ilegais se feitas sem licença.

No âmbito administrativo, os responsáveis por obras irregulares em APP de mangue estão sujeitos a embargos, multas significativas e ordens de demolição emitidas pelos órgãos ambientais competentes (seja a CETESB e a Prefeitura, na esfera estadual e municipal, seja o IBAMA e a SPU, na esfera federal, dado o envolvimento de bem da União). Essas sanções administrativas visam cessar o dano e promover a recuperação da área degradada, obrigando o infrator a remover construções e reflorestar o manguezal lesado. De fato, a SPU já encaminhou ordens de demolição a diversas estruturas nas marinas investigadas, e espera-se uma ação coordenada com órgãos ambientais para efetivar a recuperação dos locais afetados.

No campo penal, as condutas verificadas podem se amoldar a diversos tipos de crimes ambientais previstos na Lei Federal n.º 9.605/1998 (Lei de Crimes Ambientais). Um deles é o crime de destruir ou danificar floresta considerada de preservação permanente (o que abrange manguezais), com pena de até 3 anos de detenção, além de multa. Adicionalmente, o mesmo diploma considera crime impedir ou dificultar a regeneração natural de vegetação em APP, o que é aplicável quando, por exemplo, se impermeabiliza o solo do mangue com aterros e construções, impedindo que a vegetação nativa retome o espaço. Há também o artigo que tipifica como crime construir em terreno não edificável ou em seu entorno (entendido como áreas protegidas por seu valor ecológico, paisagístico etc.) sem autorização do órgão competente. Este último enquadra perfeitamente a situação de erguer edificações em solo de manguezal ou sobre as águas públicas do canal sem permissão. Embora esses crimes tenham penas relativamente brandas (detenção de seis meses a três anos, na maioria dos casos), eles podem gerar antecedentes criminais, apreensão de bens (embarcações, equipamentos) e obrigação de reparação do dano ambiental, além de servirem como fundamento para ações civis indenizatórias.

Vale notar que a atuação do MPF no caso sugere a adoção de medidas judiciais amplas. O Ministério Público Federal, ao zelar pelo patrimônio da União e pelo meio ambiente (bem difuso tutelado pela coletividade), possui legitimidade para propor Ações Civis Públicas contra os responsáveis, buscando a demolição das obras irregulares, a recomposição do manguezal degradado e indenizações pelos danos ambientais. Uma ação civil pública bem-sucedida poderia resultar, por exemplo, na condenação dos proprietários das marinas a remover os píeres e aterros, replantar árvores de mangue e pagar multas ou custear projetos ambientais compensatórios. Já houve precedentes importantes: recentemente, a Justiça Federal de Pernambuco manteve a condenação de proprietários que construíram uma marina e outras estruturas em área protegida de mangue, obrigando-os a demolir tudo e recuperar o manguezal degradado, além de fixar multa para ressarcir os danos ambientais. Esse caso mostra que o Judiciário tende a ser rigoroso quando as provas do impacto ambiental e da irregularidade fundiária são robustas.

No tocante às responsabilidades criminais, o MPF pode ainda oferecer denúncia criminal contra os envolvidos, caso seja constatado dolo ou culpa nas infrações ambientais. Por exemplo, se ficar provado que determinados empresários ordenaram o desmatamento do mangue para construir seus atracadouros, eles podem ser denunciados por crime ambiental, assim como eventuais agentes públicos coniventes podem responder por prevaricação ou condescendência criminosa. Importante lembrar que, em crimes ambientais, pessoas jurídicas (empresas, condomínios) também podem ser responsabilizadas, recebendo penas como multas elevadas e restritivas de direitos (suspensão de atividades, impedimento de contratar com o poder público, etc.), conforme previsto na lei.

Por fim, existe a dimensão dos crimes contra o patrimônio da União. A apropriação e uso privativo de bens públicos de uso comum (como é o caso das águas e margens do canal) sem autorização podem configurar ilícitos previstos em legislação específica. Embora não tão frequentemente acionados, dispositivos do Código Penal relativos a esbulho possessório e da Lei de Gerenciamento Costeiro podem ser analisados. Em suma, os infratores enfrentam um arsenal jurídico considerável que pode ser mobilizado pelas autoridades: sanções administrativas, ações civis e processos criminais, todos convergindo para coibir as práticas irregulares e restaurar a legalidade. A investigação do MPF, ao integrar essas frentes, sinaliza que haverá consequências jurídicas sérias para os responsáveis, caso as irregularidades sejam confirmadas.

Especulação imobiliária e privatização do litoral: um contexto mais amplo

O que se desenrola no Canal de Bertioga não é um caso isolado – ele se insere em um contexto mais amplo de especulação imobiliária e tentativa de privatização de espaços públicos no litoral paulista. Historicamente, o litoral de São Paulo (especialmente na Baixada Santista e litoral norte) atraiu investimentos de alto padrão e interesse de elites econômicas, dada sua beleza cênica e proximidade com o maior centro urbano do país. Contudo, esse desenvolvimento muitas vezes ocorreu de forma excludente e predatória, pressionando ecossistemas frágeis como praias, restingas e manguezais. Na região do canal e adjacências, existem condomínios fechados e loteamentos de luxo que, ao longo dos anos, avançaram sobre áreas naturais e dificultaram o acesso da população em geral a locais que por lei são públicos. Costuma-se dizer que “metade do PIB brasileiro” tem casas de veraneio em certos trechos privilegiados do litoral paulista, ilustrando o peso dos interesses privados na ocupação costeira. Nesse cenário, terrenos de marinha e estuários se tornaram alvos cobiçados – muitos empreendedores buscam apropriar-se dessas áreas (legal ou ilegalmente) para expandir marinas, resorts e residências, aumentando o valor de suas propriedades.

Um aspecto central desse contexto é a tentativa de converter bens públicos em enclaves privados. No Brasil, a Constituição e as leis garantem que áreas como praias, margens de rios navegáveis e manguezais sejam de uso comum do povo, pertencentes à União. Em teoria, ninguém poderia se intitular “dono” de uma praia ou do leito de um canal – apenas é possível obter concessões ou autorizações específicas, e ainda assim sem ferir o interesse coletivo (por exemplo, uma concessão portuária ou de aquicultura sustentável, que são atividades de utilidade pública ou interesse social). Contudo, na prática, o que se vê em vários pontos do litoral é a privatização de fato: condomínios que bloqueiam o acesso à praia, hotéis que cercam trechos de costeira, e marinas que controlam o trânsito em canais e rios, espantando comunidades tradicionais. O Canal de Bertioga, pelas evidências, tornou-se um caso emblemático dessa dinâmica, onde milionários agem como se fossem proprietários de um pedaço do mar, enquanto pescadores que ali vivem há gerações sentem-se estrangeiros em sua própria terra.

Especialistas ambientais e urbanistas apontam que a especulação imobiliária desenfreada no litoral causa dupla consequência negativa: por um lado, agrava a desigualdade social e conflitos fundiários, ao retirar espaços antes livres das mãos da coletividade e concentrá-los em poucos privilegiados; por outro, acarreta a degradação de ecossistemas sensíveis, ao suprimir áreas de mangue e restinga que protegem a costa. Nos últimos anos, houve inclusive tentativas de flexibilizar a legislação para facilitar a privatização dessas áreas, o que gerou grande preocupação na comunidade científica. Um exemplo foi a chamada “PEC das Praias” (PEC 39/2011), proposta de emenda à Constituição que visava transferir terrenos de marinha da União para estados, municípios ou proprietários privados em áreas urbanas. Pesquisadores advertiram que mudanças desse tipo incentivariam a grilagem e ocupação ilegal de manguezais e restingas, abrindo caminho para ainda mais empreendimentos em locais hoje preservados. Da mesma forma, em 2020, uma resolução do CONAMA que protegia manguezais e faixas de restinga foi revogada pelo governo federal da época, ação vista como porta aberta à especulação imobiliária nessas áreas – medida que acabou barrada posteriormente pelo Supremo Tribunal Federal, que garantiu a manutenção das proteções ambientais.

No contexto do litoral paulista, órgãos estaduais e federais de meio ambiente vêm travando uma batalha constante para conter ocupações ilegais e loteamentos clandestinos. Há diversas Áreas de Proteção Ambiental (APAs) e Parques Estaduais ao longo da costa (por exemplo, a APA Marinha Litoral Centro e o Parque Estadual da Restinga de Bertioga) criados justamente para conciliar conservação e uso sustentável, impedindo a conversão total de ecossistemas costeiros em zonas urbanizadas. Contudo, a efetividade dessas unidades de conservação é frequentemente limitada pela falta de fiscalização e por pressões políticas locais. Em municípios turísticos, a geração de empregos e renda a curto prazo por meio de empreendimentos imobiliários muitas vezes fala mais alto que a preservação ambiental e os direitos das comunidades caiçaras. Essa lógica contribuiu para que irregularidades como as do Canal de Bertioga prosperassem por anos.

Urge, portanto, um reequilíbrio entre desenvolvimento e conservação, e casos como este podem servir de divisor de águas. A mobilização do MPF e de organizações civis sinaliza um aumento da conscientização e da intolerância a esses abusos. A mensagem é clara: áreas públicas e ambientais não podem ser tratadas como propriedade privada. A investigação das marinas no Canal de Bertioga poderá estabelecer jurisprudência e exemplos práticos de que ninguém está acima da lei ambiental, seja um pescador humilde ou um magnata. Isso tem implicações de longo alcance para todo o litoral de São Paulo: se as leis forem efetivamente aplicadas nesse caso, outros empreendedores pensarão duas vezes antes de avançar sobre um manguezal ou bloquear um acesso público, sob pena de perder investimentos milionários em demolições judiciais e multas.

Sintetizando

O caso do Canal de Bertioga expõe de forma contundente as tensões entre interesses privados e a tutela do patrimônio público ambiental. De um lado, evidencia-se um projeto de privatização encoberta – onde a força econômica tenta se sobrepor ao Estado de Direito, apropriando-se de bens naturais comuns. De outro, mostra a importância de instrumentos legais e institucionais, como o MPF e a imprensa livre, na defesa do meio ambiente e das comunidades tradicionais. Aprimorar a proteção do Canal de Bertioga não significa apenas demolir marinas ilegais, mas também restaurar a justiça socioambiental: devolver o acesso aos pescadores, regenerar o manguezal destruído e assegurar que futuras gerações possam usufruir desse ecossistema ímpar.

Espera-se que a investigação em curso resulte em ações concretas e exemplarizantes. Se confirmadas as irregularidades, a remoção das estruturas ilegais e a recuperação dos habitats degradados devem ser impostas, mostrando que o lucro privado não pode vir à custa do interesse coletivo e do equilíbrio ecológico. Além disso, o episódio deve servir de alerta para as autoridades locais e sociedade em geral sobre a necessidade de planejamento costeiro responsável. A região litorânea de São Paulo, assim como tantas outras, só conseguirá um desenvolvimento sustentável se respeitar os limites da natureza e incluir as comunidades locais no processo decisório. Em última instância, a luta contra a especulação imobiliária predatória e a privatização irregular de espaços públicos é uma luta pelo direito à cidade (e ao litoral) para todos, pelo reconhecimento de que os manguezais, praias e canais são partes integrantes do bem comum e do patrimônio natural brasileiro.

Com esse texto mais extenso, técnico e detalhado, procura-se aqui lançar um olhar crítico e fundamentado sobre o tema, embasando os argumentos em fatos apurados e na legislação vigente. O Canal de Bertioga, pela sua relevância ecológica e simbólica, pode se tornar um marco na defesa do litoral brasileiro contra a degradação e a usurpação privada – um passo na direção de um modelo em que desenvolvimento e conservação andem de mãos dadas, garantindo a preservação desse paraíso de mangue para as futuras gerações.

Fontes Pesquisadas:

  • Diário do Litoral – Reportagens da série “Milionários de Mangue” sobre as marinas no Canal de Bertioga.
  • Declarações de autoridades e representantes civis envolvidos (MPF, SPU, AGUAVIVA) conforme noticiado.
  • Legislação ambiental pertinente: Código Florestal (Lei 12.651/2012) e Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998).
  • Jurisprudência relevante: decisão do TRF-5ª Região determinando demolição de construções irregulares e recuperação de manguezal em área similar.
  • Análises sobre especulação imobiliária e proteção de manguezais no Brasil.

*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD

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