Por José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado e jornalista
A População como Refém
A saúde do brasileiro tornou-se o prêmio em uma disputa de poder. De um lado, a indústria do ensino privado utiliza os tribunais para expandir seus lucros com a abertura a qualquer custo de novos cursos de medicina. Do outro, o Conselho Federal de Medicina (CFM) trava uma batalha ferrenha contra essa expansão, sob o pretexto de zelar pela qualidade. Contudo, essa defesa mascara o real interesse em manter uma restrita reserva de mercado, garantindo a alta rentabilidade dos profissionais já estabelecidos. Nesse fogo cruzado de interesses, a população, que não para de crescer, que precisa de mais médicos e de boa formação, acaba como a principal vítima.
A Cortina de Fumaça da Qualidade
O campo de batalha escolhido para essa guerra é o Judiciário. Nos últimos meses, mais de 3.500 vagas foram criadas por força de liminares, ignorando as diretrizes da Lei do Mais Médicos, que visava interiorizar a formação médica. O CFM argumenta publicamente que a proliferação de escolas sem infraestrutura adequada, como leitos do SUS para treinamento, compromete o futuro da profissão. Embora a preocupação com a qualidade seja legítima, a entidade luta com o mesmo ímpeto para impedir a abertura de cursos até mesmo em centros que cumprem os requisitos. Assim, a Judicialização do ensino médico avança, alimentada por instituições que buscam o lucro e por um conselho que, ao dificultar a entrada de novos profissionais, protege os seus.
Disputa de Lobbies e a Judicialização do ensino médico
Nesse cenário, a discussão sobre a qualidade da formação, embora fundamental, serve também como uma conveniente cortina de fumaça. Enquanto as faculdades acusam o MEC de lentidão para justificar suas ações na Justiça, o CFM investe em um forte lobby para barrar qualquer flexibilização. O resultado é um impasse onde os dois lados se acusam, mas cujas ações convergem para um ponto em comum: a defesa de seus próprios interesses corporativos e financeiros. A Judicialização do ensino médico tornou-se, portanto, a principal ferramenta nessa disputa, onde o bem-estar social e a necessidade de mais profissionais em áreas remotas ficam em segundo plano. O cidadão comum assiste passivamente, refém de um sistema que parece mais preocupado com cifras e poder do que com vidas.
Para Além da Guerra de Vaidades
A solução para o caos no ensino médico não virá da vitória de um dos lados, mas sim do resgate do interesse público como prioridade. Não se pode aceitar a criação de “escolas de papel” que visam apenas o lucro, tampouco se pode admitir que a defesa da qualidade sirva de pretexto para criar uma casta de profissionais supervalorizados pela escassez. É fundamental que o Estado, por meio do MEC e com o respaldo do Judiciário, assuma seu papel regulador com firmeza, estabelecendo critérios técnicos e transparentes que não possam ser manipulados por nenhum dos lobbies. Enquanto a medicina for tratada como um mercado e não como um direito, a saúde da população continuará em risco.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva. Em 2018, fundou e passou a coordenar o Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD), criado a partir da convicção de que a engenharia, como base material do desenvolvimento nacional, deve estar a serviço da democracia, da ética e da justiça social.
Declaração de Fontes: As informações contidas neste artigo foram obtidas a partir de dados públicos do Supremo Tribunal Federal (STF), do Ministério da Educação (MEC), de posicionamentos públicos do Conselho Federal de Medicina (CFM) e de reportagens da imprensa nacional que analisam o conflito de interesses na área.