DO LUSCO-FUSCO À CLARIDADE: O Aprendizado do Olhar

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Talvez a existência humana não seja nada além de um longo e custoso parto da visão.

Olho intensamente todos os dias para os berços de meus netos, os gêmeos Benjamin e Tally — ou, como docemente os chamo, Ben Ben e Tá Tá. Eles, em seus primeiros meses de vida prematura, travam a batalha primordial da biologia: aprender a ver. Dizem os especialistas, e a fisioterapia confirma, que suas retinas ainda imaturas captam o mundo em recortes limitados: tudo é preto, branco e, no máximo, vermelho. Eles percebem vultos, identificam o amor pela voz, mas o contorno da realidade ainda lhes é uma névoa.

Ao contemplá-los, percebo, com a alma trêmula de quem chega aos setenta anos, que eu não fui muito diferente deles durante a maior parte da minha jornada. Eu também nasci tentando enxergar. Porém era deficiente visual, e minha cegueira não era biológica; era uma catarata social, uma miopia da alma.

Passei anos imerso num lusco-fusco existencial. Embora meus olhos estivessem abertos, minha vista estava nuveada pelo entorno. Cresci e vivi em um ambiente onde a paisagem era obstruída por muros de egoísmo, formado por pessoas cuja única ótica possível era a da acumulação. Eram cegos guiando cegos em direção a tesouros que ao cabo os escravizavam, por ter de tornarem-se guardiães involuntário destes tesouros. Eram como o gigante Fafner da lenda nórdica, que, ao renunciar ao amor, obteve o maior tesouro do mundo, roubado dos anões mineradores Nibelungos. Ele pega seu tesouro, que entre muito ouro continha um anel mágico, o leva para o meio da selva, senta-se em cima deste tesouro e usa o anel para transformar a si mesmo em um dragão terrível. Assim ninguém iria se apoderar de seu tesouro, um tesouro que, nota-se, ele mesmo jamais desfrutou. Ainda assim, chegou o dia em que o crédulo Siegfried que, por não entender o perigo que o dragão representava, enterrou sua espada no coração dele, bebeu seu sangue e, por isso, passou a entender o canto dos pássaros… mas esta já outra estória. Todas estão nos livros sobre os mitos nórdicos e no ciclo de óperas O Anel dos Nibelungos, de Richard Wagner.

Eu via, mas não enxergava. O caranguejeiro na beira da estrada era apenas um vulto na paisagem, eram uma sombra indefinida, tal qual aquelas que meus netos veem hoje.

Foi preciso que o destino, em sua infinita sabedoria, colocasse em meu caminho um amigo — um intelectual de alma nobre, um irmão que a vida me deu — para me ajudar a limpar as lentes. Foi ele quem me estendeu a mão e disse: “Olhe. Olhe de verdade”. Ele me ajudou a dissipar a neblina do ter para que eu pudesse, finalmente, vislumbrar o ser. Ele destravou o humano que habitava em mim, sufocado pela lógica do lucro.

Hoje, carrego comigo os títulos que o mundo acadêmico e profissional me conferiu. Sou advogado, jornalista, engenheiro; doutor e pós-doutor em engenharia de mobilidade. Mas confesso, com a humildade que só o tempo nos traz: todos esses diplomas são papéis pálidos se comparados à lição que aprendo agora.

O meu verdadeiro doutorado não acontece nas universidades, mas na lama fértil do mangue, na luta dos desvalidos, na defesa daqueles a quem tudo foi negado. A minha verdadeira orientadora de tese não veste toga, mas sim a dignidade de uma liderança “improvável”, uma mulher caranguejeira como a Mislene, que se levanta contra a invisibilidade imposta pelos poderosos para defender seu povo e seu chão.

É uma ironia belíssima e dolorosa. Aos setenta anos, atinjo a plenitude do meu amadurecimento não ensinando, mas aprendendo com recém-nascidos. Enquanto Ben Ben e Tá Tá lutam para distinguir as cores físicas do mundo, eu luto com vigor para distinguir e defender as cores da justiça. Sim, sabemos, a lei tem cor, e rejeita a cor oposta.

Sinto-me, enfim, um humano mais verdadeiro. Não pelo que acumulei, mas pelo que sou capaz de doar. Uso hoje a minha engenharia para construir pontes de esperança, o meu direito para advogar pelos esquecidos, e o meu jornalismo para dar voz aos silenciados.

Saí do preto e branco da indiferença para enxergar a vida em suas tonalidades. E, assim como meus netos buscam o foco no rosto da mãe, do pai, do avô… eu busco o foco na face da humanidade, grato ao cosmo por, finalmente, ter aprendido a aprender a ver.

José Manoel Ferreira Gonçalves

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