José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado, jornalista e cientista político
O impacto do “cancelamento” nas instituições
A demissão de Boaventura de Sousa Santos do Centro de Estudos Sociais (CES), instituição que ele fundou e liderou por décadas, não foi apenas um evento pessoal. Representa, segundo ele, o ápice de um processo marcado pela adoção extrema da cultura do cancelamento. Essa mesma cultura, que se propaga com rapidez e intensidade em diversos setores da sociedade, foi descrita pelo intelectual como uma ferramenta que silencia vozes críticas e ameaça o pensamento democrático.
Boaventura afirmou que o CES, em vez de resistir ao fenômeno, capitulou. Ele classificou a situação como um “golpe de estado” interno, em que disputas políticas e narrativas seletivas culminaram em sua saída. A questão vai além do indivíduo: a adoção acrítica da cultura do cancelamento ameaça a pluralidade de ideias em instituições que deveriam ser espaços para o contraditório e o debate.
Cultura do cancelamento: arma política ou justiça social?
Para Boaventura, a cultura do cancelamento ultrapassa a correção de injustiças históricas e se transforma em um mecanismo político. Ele argumenta que, ao intimidar e suprimir vozes, especialmente na esquerda, esse fenômeno tem servido para destruir reputações e neutralizar lideranças críticas. Sua experiência pessoal reforça sua tese: as acusações contra ele, que ele nega enfaticamente, teriam motivações políticas.
O caso de Alysson Mascaro, também citado por Boaventura, ilustra o que ele chama de “perseguição sem transparência”. Ambos os intelectuais foram acusados de assédio sem acesso ao devido processo legal, algo que ele vê como um atentado à democracia. “Denúncias anônimas e falta de contraditório criam uma situação em que a presunção de inocência é ignorada”, afirmou.
Relevância do CES e as motivações por trás
O CES, fundado em Coimbra, Portugal, tem sido um dos principais polos de pensamento crítico e alternativo, responsável por 17% dos doutoramentos da Universidade de Coimbra em 2020. Boaventura destaca números significativos: desde 2010, mulheres lideram o centro, e ele pessoalmente contribuiu para lançar 309 jovens pesquisadores, desafiando a ideia de um ambiente acadêmico excludente.
No entanto, ele sugere que sua projeção internacional e o trabalho com epistemologias do Sul geraram resistência, até mesmo inveja acadêmica, que alimentou as campanhas difamatórias. Em um contexto de polarização, o sucesso e a liderança do CES tornam-no alvo de disputas ideológicas.
Reflexões sobre o futuro da democracia
O cerne das preocupações de Boaventura recai sobre o impacto da cultura do cancelamento na democracia. Ele alerta que sem a defesa do contraditório, da presunção de inocência e do devido processo, a sociedade corre o risco de perder valores fundamentais. Mais grave ainda, para ele, é o impacto na esquerda, que deveria liderar a resistência a esses fenômenos.
Como articulista, não tomo partido nem dos denunciantes nem dos denunciados. Minha preocupação reside no crescimento da cultura do cancelamento, que parece ameaçar qualquer pessoa que professe ideologia progressista, independentemente de sua trajetória ou legado.
O caso de Boaventura de Sousa Santos, longe de ser isolado, serve como alerta. A cultura do cancelamento, quando desvirtuada, transforma-se em ferramenta de silenciamento político, afetando instituições, intelectuais e o pensamento crítico. O desafio agora é encontrar um equilíbrio entre responsabilização e respeito às liberdades democráticas.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá.
Declaração de Fontes: “As informações contidas neste artigo foram obtidas a partir da entrevista de Boaventura de Sousa Santos ao Brasil 247 e de dados complementares obtidos em fontes confiáveis.”