*Por José Manoel Ferreira Gonçalves
[Engenheiro, advogado e jornalista]
O império intocável do corporativismo
O Brasil vive um momento histórico de ruptura com velhas estruturas de poder que resistem ao tempo e ao escrutínio público. Entre elas, estão os conselhos de fiscalização profissional — entidades que, embora atuem como braços reguladores do Estado, comportam-se há décadas como feudos corporativistas, imunes à fiscalização, à transparência e à alternância de poder. A criação do Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) pela Portaria nº 466, de 15 de abril de 2025, é uma resposta tardia, porém necessária, a esse câncer institucional.
Amparada em três acórdãos contundentes do Tribunal de Contas da União (TCU), a medida revela que, longe de serem apenas autarquias de apoio técnico, muitos conselhos funcionam como clubes privados de influência. Controlam eleições à base de reeleições ilimitadas, distribuem cargos comissionados em desacordo com a lei, resistem a concursos públicos e manipulam suas próprias regras sem supervisão externa. A frase de foco completa — “conselhos de fiscalização profissional” — expõe a dimensão do problema: entidades que deveriam zelar pela ética profissional tornaram-se reféns de estruturas internas antidemocráticas.
Conselhos de fiscalização profissional
Esses conselhos administram bilhões de reais oriundos de anuidades obrigatórias, cobradas coercitivamente de médicos, advogados, engenheiros, psicólogos, jornalistas e tantos outros profissionais. Porém, poucos prestam contas de forma efetiva. Os portais de transparência são negligenciados. As eleições internas viraram mecanismos de perpetuação de poder. E, para piorar, qualquer tentativa de regulação externa é recebida com resistência feroz, sob o argumento de “autonomia administrativa”.
Mas autonomia não é sinônimo de soberania. É inconcebível que entidades com função pública escapem do controle da própria República. Os conselhos não são repúblicas independentes. São instituições de interesse público que, por isso mesmo, devem obedecer aos princípios constitucionais da moralidade, legalidade, impessoalidade e publicidade.
O silêncio cúmplice das entidades
Onde estavam os conselhos enquanto o TCU apontava as irregularidades nos acórdãos 1925/2019, 1237/2022 e 2603/2024? Em silêncio. E quando foram cobrados a regulamentar eleições, limitar reeleições, realizar concursos públicos e justificar o uso de recursos públicos? Seguiram calados — ou pior: responderam com ações judiciais para evitar o cumprimento das determinações.
Esse silêncio não é técnico. É político. É o ruído abafado de uma elite burocrática que se acostumou a viver à sombra da fiscalização, protegida por uma zona cinzenta jurídica que lhes confere poder sem responsabilidade. E não se trata de exceções: a crítica se aplica aos grandes e aos pequenos, aos conselhos federais e aos regionais, do Oiapoque ao Chuí.
É importante destacar que o Grupo de Trabalho Interministerial, ao reunir representantes da Casa Civil, AGU, CGU, Ministério do Trabalho e da Gestão, aponta para um esforço coletivo do Estado em desmontar esse arranjo corporativista. Mas ainda será preciso muito mais que reuniões quinzenais e relatórios técnicos. Será necessário enfrentar a pressão organizada dos conselhos e a judicialização de qualquer tentativa de reforma. A sociedade civil precisa se mobilizar para exigir um novo marco legal para essas entidades.
O Brasil precisa aplicar a lógica à governança profissional. Não é mais admissível que entidades com esse grau de poder operem fora do alcance do interesse público. Precisamos, sim, de conselhos atuantes, éticos e independentes. Mas independência não significa isolamento. O que está em jogo é o equilíbrio entre autonomia e responsabilidade.
Hora de desarmar o feudo e servir ao povo
A criação do Grupo de Trabalho Interministerial é uma porta aberta para a reforma dos conselhos de fiscalização profissional. Mas só surtirá efeito se vier acompanhada de coragem política e mobilização social. O tempo do corporativismo opaco, das eleições viciadas, dos jetons descontrolados e dos cargos distribuídos por apadrinhamento precisa acabar.
Os conselhos devem servir ao povo brasileiro — e não a seus próprios dirigentes.
Declaração de Fontes: As informações contidas neste artigo foram baseadas na Portaria nº 466/2025 publicada no Diário Oficial da União, e nos Acórdãos nº 1925/2019, 1237/2022 e 2603/2024 do Tribunal de Contas da União, além de reportagens e análises jurídicas do Consultor Jurídico, JOTA, Agência Brasil e O Globo.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD