CAPITAL E AUTOEXPLORAÇÃO ALGORÍTMICA

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José Manoel Ferreira Gonçalves
Engenheiro, advogado, jornalista e cientista político

Da terra senhorial ao dinheiro em movimento

Quando o feudalismo europeu começou a apodrecer, a riqueza ainda morava sobretudo na terra e na hierarquia pessoal entre senhores e servos. Portanto, o camponês produzia para o senhor, entregava parte da colheita e recebia proteção militar e alguma segurança de subsistência. Ao mesmo tempo, as cidades cresciam, os comerciantes acumulavam metais preciosos e as rotas marítimas abriam um mundo de mercadorias e oportunidades. Desse modo, o dinheiro passou a comandar as decisões, e não apenas o título de nobreza.

Além disso, os cercamentos de terras na Inglaterra expulsaram milhões do campo e criaram um exército de pessoas sem meios de produção próprios. Assim, esses ex-camponeses precisaram vender a única coisa que ainda possuíam: sua força de trabalho. Portanto, o capitalismo nascente se constituiu como um sistema que separou produtores dos meios de produção e que organizou a produção em torno do lucro monetário. Ao mesmo tempo, a burguesia industrial investia em máquinas, contratava trabalhadores e media tudo em salários, juros e lucros.

Capital humano fixo autoexploração algorítmica

Assim, o capitalismo clássico se apoiou em três pilares: propriedade privada dos meios de produção, concorrência entre capitais e trabalho assalariado com alguma previsibilidade. Portanto, o capitalista arriscava o próprio dinheiro, construía fábricas, comprava máquinas e assumia o risco de prejuízo. Ao mesmo tempo, o trabalhador vendia tempo e energia em troca de um salário relativamente estável, ainda que muitas vezes miserável. Desse modo, as grandes disputas políticas giraram em torno de mais direitos, menos jornada e maior participação na riqueza produzida.

Além disso, o século XX consolidou esse modelo com o Estado social, sindicatos fortes e regulações sobre jornada, férias e aposentadoria. Assim, o capitalista ainda explorava o trabalho, mas também sustentava parte do custo de reprodução dessa força de trabalho por meio de impostos e obrigações legais. Portanto, a sociedade entendia a fábrica como um espaço central de conflito, porém também como eixo estável da vida econômica. Ao mesmo tempo, essa estabilidade abriu brechas para o questionamento radical da própria lógica capitalista.

Tecnofeudalismo: dados como nova terra

Assim, a virada digital deslocou o centro do sistema da fábrica para a plataforma. Portanto, as grandes empresas de tecnologia passaram a controlar infraestruturas essenciais: buscas, redes sociais, nuvens, meios de pagamento, marketplaces e aplicativos. Ao mesmo tempo, essas corporações não precisam possuir diretamente todas as fábricas, lojas ou veículos, porque elas controlam os acessos, os dados e os algoritmos. Desse modo, vários economistas passaram a falar em tecnofeudalismo, já que o poder se organiza mais como senhorio de território digital do que como capitalista clássico que enfrenta concorrência plena.

Além disso, os dados funcionam hoje como a terra no feudalismo. Assim, quem controla as plataformas controla o “solo” onde empresas, consumidores e trabalhadores circulam. Portanto, cada clique, cada rota, cada like alimenta um castelo invisível de informação que só alguns poucos proprietários enxergam por inteiro. Ao mesmo tempo, usuários e trabalhadores produzem esse valor gratuitamente ou quase de graça, enquanto pagam para permanecer dentro desses “feudos” digitais por meio de taxas, comissões e publicidade forçada.

Capital humano fixo autoexploração algorítmica

Assim, o tecnofeudalismo inverte a promessa central do capitalismo de mercado, que falava em concorrência, mobilidade e risco compartilhado. Portanto, em vez de vários capitalistas disputarem consumidores em mercados abertos, poucos senhores de plataforma definem regras, preços, visibilidade e até quem existe economicamente. Ao mesmo tempo, pequenos empreendedores e trabalhadores tornam-se vassalos conectados, presos a contratos de adesão, rankings opacos e avaliações constantes. Desse modo, o risco desce toda a escada e se acumula sobre quem tem menos poder de negociação.

Além disso, o capital fixo se pulveriza na base: motoristas financiam carros, restaurantes bancam cozinhas, lojistas pagam estoques, criadores investem em equipamentos, enquanto as plataformas capturam comissões e rendas de intermediação. Assim, o tecnofeudalismo preserva o lucro no topo e distribui o prejuízo na base. Portanto, o trabalhador internaliza o papel de senhor de si mesmo e se autoexplora em nome de métricas, selos, engajamentos e “oportunidades” que ele não controla. Ao mesmo tempo, o sistema apresenta esse desamparo como liberdade empreendedora, enquanto transforma a economia em uma vasta paisagem de castelos digitais cercados por muros de código.

Do lucro ao tributo digital

Assim, o capitalismo industrial girava em torno do lucro obtido na produção, ainda que com muita desigualdade. Portanto, o tecnofeudalismo desloca o eixo para o tributo cobrado pelo acesso às plataformas e pela visibilidade algorítmica. Ao mesmo tempo, grandes empresas passam a pagar pedágios digitais para anunciar, vender, aparecer em buscas ou processar pagamentos. Desse modo, o topo da hierarquia captura rendas semelhantes a impostos privados, sem qualquer contrapartida democrática.

Além disso, essa mutação enfraquece o próprio imaginário capitalista de mobilidade e competição aberta. Assim, nascer fora do grande feudo digital implica quase inexistência econômica. Portanto, discutir o futuro já não significa apenas regular mercados, mas limitar poder senhorial de plataformas e recuperar soberania coletiva sobre dados, infraestrutura e regras do jogo. Ao mesmo tempo, sem essa disputa política, o século XXI corre o risco de trocar o velho patrão industrial por um novo senhor algorítmico, invisível, absoluto e isento de responsabilidades sociais.

Uberização: laboratório máximo do tecnofeudalismo

Nesse cenário, a uberização aparece como a forma mais acabada do tecnofeudalismo em operação cotidiana. No capitalismo clássico, o patrão colocava o capital na mesa, assumia o risco do negócio e extraía mais-valia do trabalho alheio. Assim, ele construía fábrica, comprava máquinas, financiava estoque e, se o mês terminasse no prejuízo, o buraco recaía sobre ele. Já o empregado, embora mal remunerado como regra, recebia salário e só podia “fechar o mês” no positivo: trabalhava, emitia sua força de trabalho e, em troca, recebia um valor fixado em contrato.

Na lógica da plataforma, essa arquitetura se inverte de forma radical. Agora, o motorista de aplicativo — empregado disfarçado de empresário — entra com o capital fixo (o veículo) e banca todas as despesas operacionais: gasolina, seguro, pneu, óleo, revisão, multas, empréstimo, depreciação. Assim, ele assume integralmente o risco do negócio, enquanto a empresa-plataforma limita-se a operar o aplicativo, intermediar corridas e cobrar sua comissão automática sobre cada transação. Se o mês for bom, a plataforma ganha. Se o mês for ruim, a plataforma ganha também. Quem pode fechar no vermelho, mesmo dirigindo sem parar, é apenas o motorista.

Enquanto o empregado formal se submete, em tese, a uma jornada de 44 horas semanais, o motorista de Uber e congêneres vive outra realidade. De direito, ele “pode” trabalhar quantas horas quiser; de fato, ele só sobrevive se trabalhar, no mínimo, algo em torno de 70 horas por semana. Assim, não é um chefe em pé no escritório que o constrange, mas a planilha econômica: aluguel vencendo, parcela do carro chegando, boleto do cartão acumulando, preço do combustível subindo. Se trabalhar menos, ele não subsiste; se trabalhar mais, ele apenas adia o colapso físico e financeiro.

Em paralelo, o discurso ideológico faz o serviço fino. Todo dia, o “grande irmão” digital sopra na teletela do zap que esse motorista é um “homem do novo tempo”, um empreendedor sem chefe, dono do próprio nariz. No entanto, ele não percebe que, na prática, sofre comando e controle não de um gerente de carne e osso, mas de um algoritmo silencioso. Se corre demais, perde pontos. Se cancela muitas corridas, cai no ranking. Se freia de forma brusca, o sistema registra. Cada gesto vira dado, e cada dado pode reduzir sua participação nas melhores corridas, nas melhores tarifas, nas melhores regiões.

Desse modo, o tecnofeudalismo mostra sua face nua: a plataforma reina como senhorio digital, cobra tributo sobre cada corrida e distribui favores algorítmicos conforme critérios opacos. O motorista, por sua vez, acredita viver o sonho do empreendedorismo, mas se vê preso a uma servidão estatística, governada por métricas invisíveis e por uma promessa de ascensão que quase nunca se realiza. No fim, ele corre o tempo todo para não sair do lugar — e, diferentemente do empregado tradicional, corre ainda o risco muito real de terminar o mês devendo por ter ousado trabalhar.

*José Manoel Ferreira Gonçalves é Engenheiro Civil, Advogado, Jornalista, Cientista Político e Escritor. Pós-doutor em Sustentabilidade e Transportes (Universidade de Lisboa). É fundador e presidente da FerroFrente e da Associação Água Viva, coordenador do Movimento Engenheiros pela Democracia (EPD) é um dos fundadores do Portal de Notícias Os Inconfidentes, comprometido com pluralidade e engajamento comunitário.

Declaração de fontes:
Baseei este artigo em obras de Karl Marx sobre a transição do feudalismo ao capitalismo, em estudos de Fernand Braudel e Immanuel Wallerstein sobre economia-mundo, em análises de Yanis Varoufakis sobre tecnofeudalismo, em pesquisas de Nick Srnicek sobre capitalismo de plataformas, em reflexões de Shoshana Zuboff sobre capitalismo de vigilância e em trabalhos recentes de sociólogos e economistas que investigam o poder das Big Tech e a financeirização da economia digital.

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