A Reeleição como Distorção Democrática e o Caso Brasileiro

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*Eng. José Manoel Ferreira Gonçalves
Membro do Conselho Deliberativo da EngD

A defesa da reeleição como “conquista democrática” carece de solidez quando analisada à luz da experiência histórica brasileira e de princípios republicanos. O caso emblemático da Emenda Constitucional nº 16/1997, que permitiu a reeleição no Brasil, ilustra como a alteração das regras durante o jogo político corrompe a equidade democrática e gera consequências duradouras. Fernando Henrique Cardoso (FHC), ao promover essa mudança para beneficiar seu próprio projeto de poder, não apenas desestabilizou o sistema, mas também pavimentou o declínio de seu partido, o PSDB, cuja relevância política minguou após seus mandatos.

1. Mudar as Regras Durante a Partida: Um Ato de Interesse Próprio

A reeleição no Brasil foi institucionalizada em um contexto marcado por conflito de interesses. FHC, então presidente, articulou a emenda em 1997 para assegurar sua permanência no poder, ignorando o princípio republicano de que normas eleitorais devem ser estabelecidas antes do início do jogo político. Como destacado por estudiosos da reforma política, alterações constitucionais motivadas por conveniências momentâneas minam a credibilidade das instituições. O próprio FHC admitiu, décadas depois, que a reeleição foi um “erro histórico”, reconhecendo que a busca por um segundo mandato incentiva governantes a priorizarem táticas eleitoreiras em detrimento do interesse público.

A ironia é que, enquanto o PSDB usou a reeleição para prolongar seu poder, o partido entrou em declínio posterior, perdendo espaço para forças que criticaram justamente o fisiologismo da era FHC. Isso demonstra que a manipulação das regras gera efeitos colaterais imprevisíveis, corroendo a base de apoio de seus idealizadores.

A tese de que a reeleição fortalece a soberania popular desconsidera o contexto espúrio de sua implementação. A emenda de 1997 foi aprovada mediante um esquema de compra de votos no Congresso, com deputados recebendo até R$ 200 mil para votar a favor. Gravações e confissões comprovam a participação de aliados de FHC, como o ministro Sérgio Motta, na distribuição de recursos para assegurar a maioria necessária515. Como afirmou o jornalista Mario Sabino, a reeleição “constitucionalizou o fisiologismo”, transformando o Estado em moeda de troca para sustentar projetos pessoais.

Além disso, o argumento de que “o povo queria a reeleição” mascara o medo instrumentalizado da ascensão do PT. FHC justificou a emenda como forma de evitar uma vitória de Lula em 1998, revelando que a mudança foi menos sobre democracia e mais sobre controle oligárquico.

3. A Reeleição como Fonte de Instabilidade e Populismo

Contrariando a defesa da “continuidade administrativa”, a reeleição frequentemente leva a ciclos de irresponsabilidade fiscal. No segundo mandato de FHC, o Brasil enfrentou a desvalorização do Real em 1999, atribuída à postergação de ajustes para não prejudicar sua campanha. Já Lula e Dilma Rousseff, buscando a reeleição, adotaram políticas expansionistas que desequilibraram as contas públicas, viabilizando a crise política de 2015.

Como alertou o cientista político Juan Linz, sistemas presidencialistas com reeleição tendem a polarizar a política, transformando eleições em plebiscitos pessoais e incentivando líderes a adotarem medidas populistas para manter popularidade. Nos EUA, citados como exemplo, o limite de dois mandatos foi estabelecido justamente após Franklin Roosevelt eleger-se quatro vezes, portanto a reeleição americana foi idealizada e instituída para evitar concentração excessiva de poder, e não o contrário — uma lição que o Brasil ignorou.

O argumento de que a reeleição garante a realização de projetos de longo prazo não prospera, os projetos são institucionais e não pessoais, e, quando se quiser manter uma determinada ideologia, basta lutar para eleger um correligionário, algo mais lídimo que lutar para eleger a si mesmo sentado na cadeira que aspira.

4. O Equívoco do Direito Comparado: Contextos Distintos

A comparação com democracias consolidadas como Alemanha ou França é enganosa. Na Alemanha, o chanceler é eleito pelo Parlamento, um sistema parlamentarista que equilibra poderes. No Brasil, o presidencialismo com reeleição cria superpoderes, permitindo que o Executivo use máquinas públicas e orçamentos para fins eleitorais. Como destacado na tese “Por que os atores mudaram as regras do jogo?”, a reeleição no Brasil reduziu a capacidade de controle legislativo sobre o presidente, enfraquecendo freios e contrapesos.

Na América Latina, a reeleição está associada a crises democráticas, como na Venezuela de Chávez ou na Nicarágua de Ortega. Até mesmo FHC reconhece que o modelo brasileiro falhou em importar a maturidade institucional dos EUA, onde a tradição de alternância é mais arraigada.

5. Uma Proposta Alternativa: Mandato Único e Renovação Ética

A solução ideal, como propõe o senador Rodrigo Pacheco, seria adotar um mandato único de cinco anos, sem possibilidade de reeleição. Isso eliminaria o “estado eleitoral permanente” e forçaria os governantes a focarem em legados, não em campanhas. O constitucionalista Celso Bastos, citado no texto original, defende a rotatividade como forma de evitar a “degeneração do poder”.

Como ensina Norberto Bobbio, a democracia exige regras estáveis que previnam a manipulação por interesses contingentes. A reeleição, no caso brasileiro, tornou-se um mecanismo de perpetuação de elites, não de emancipação popular.

Reeleição como Antítese da República

A experiência brasileira comprova que a reeleição é uma armadilha institucional. Ao permitir que governantes em exercício alterem as regras para se beneficiarem, corrompe-se o princípio da isonomia democrática. O declínio do PSDB pós-FHC simboliza o preço político de tal estratégia: partidos que apostam em vantagens momentâneas perdem credibilidade a longo prazo.

Como escreveu Mario Sabino, “a ruína causada pela PEC da reeleição é maior do que a de 8 de janeiro”. Restaurar a integridade democrática exige abolir esse mecanismo, resgatando o espírito da Constituição de 1988, que originalmente rejeitava a reeleição para evitar o personalismo no poder. A verdadeira conquista democrática não é a permanência de indivíduos, mas a renovação ética das instituições.

*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá. Membro do Conselho Deliberativo da EngD

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