*Por José Manoel Ferreira Gonçalves (cientista político)
Refazendo a conhecida História de Bonhoeffer e da Estupidez Coletiva
Bonhoeffer, era um proeminente intelectual alemão e teólogo, que ergueu-se como uma voz dissonante contra a ascensão do nazismo. Sua firme oposição ao regime totalitário de Hitler culminou em sua prisão, um período que se revelaria fecundo em reflexões profundas sobre a condição humana e os paradoxos da sociedade.
Confinado em sua cela, Bonhoeffer confrontou uma questão lancinante: como era possível que a Alemanha, nação de vanguarda no cenário científico, tecnológico e cultural europeu e mundial, se entregasse com tamanha veemência ao delírio nazista e suas políticas abertamente irracionais e criminosas? A perplexidade diante da adesão fervorosa de seus compatriotas a Hitler, um líder e ideologia que pareciam afrontar a lógica e a moralidade, impulsionou-o a uma busca incansável por respostas.
Dessa introspecção angustiada, germinou uma perturbadora conclusão: o povo alemão, outrora admirado por sua erudição e sofisticação, havia sucumbido à estupidez coletiva. Esta constatação o levou a elaborar um ensaio incisivo sobre a natureza da estupidez, um texto de notável atualidade e relevância para compreendermos os desafios contemporâneos.
Bonhoeffer, em sua análise perspicaz, desmistificou a estupidez como um mero déficit cognitivo individual. Ele a concebeu como um fenômeno primordialmente sociológico e contagioso, florescendo no terreno fértil da interação social. Para o teólogo, a estupidez se propaga como um vírus ideológico, necessitando da adesão de múltiplos indivíduos para se consolidar. Ela se manifesta como um encantamento coletivo, tecido por slogans e narrativas simplistas que sequestram o pensamento crítico e a razão. Assim, mesmo mentes brilhantes e cultivadas podem, em determinados contextos, exibir comportamentos flagrantemente estúpidos, não como uma falha inerente à sua capacidade intelectual, mas como uma manifestação episódica, induzida pelo contágio social.
Indivíduos imersos nesse estado de estupidez coletiva tornam-se impermeáveis à argumentação racional. Alertas sobre as consequências nefastas de suas ações, tanto para si quanto para o coletivo, são sumariamente descartados, ignorados com obstinação. Paradoxalmente, eles se aferram à sua insensatez com um orgulho inabalável, considerando-a, porventura, um sinal de virtude ou discernimento superior.
Mais alarmante ainda, a tentativa de confrontar a estupidez com a razão pode ser contraproducente e até perigosa. O indivíduo tomado pela estupidez coletiva frequentemente interpreta a argumentação lógica como uma agressão pessoal, reagindo com irritabilidade e, em casos extremos, com hostilidade.
Bonhoeffer adverte que existem momentos críticos na trajetória das sociedades em que a estupidez coletiva se torna uma força avassaladora, aparentemente invencível. É nesse caldo cultural turvo que germinam as ditaduras e se prenuncia o declínio das nações, quando a irracionalidade coletiva mina os alicerces da civilidade e do progresso.
Posteriormente, o historiador e economista italiano Carlo Cipolla, inspirado na linha de raciocínio de Bonhoeffer, refinou a teoria da estupidez coletiva em um conjunto conciso de cinco leis fundamentais:
- Lei da Subestimação: Invariavelmente, subestimamos a prevalência da estupidez na sociedade. Ela é mais onipresente do que imaginamos.
- Lei da Distribuição Universal: A probabilidade de um indivíduo ser estúpido transcende barreiras de educação, status social, riqueza ou inteligência. A estupidez se distribui equitativamente por todos os estratos da população.
- Lei do Dano Gratuito: O indivíduo estúpido causa prejuízo a outrem e a si próprio, sem auferir qualquer benefício tangível dessa ação danosa. Sua ação é intrinsecamente destrutiva e desprovida de lógica utilitária.
- Lei da Imprevisibilidade: Pessoas não estúpidas tendem a subestimar o potencial lesivo dos estúpidos. A irracionalidade e a imprevisibilidade da ação estúpida tornam difícil antecipar e mitigar seus efeitos perniciosos.
- Lei da Periculosidade: Os estúpidos representam uma ameaça maior do que bandidos ou indivíduos mal-intencionados. Um estúpido investido de poder se torna um agente de destruição em larga escala, potencialmente catastrófico para a sociedade.
Em consonância com a visão de Bonhoeffer, a libertação da estupidez coletiva não emerge de um despertar individual isolado, mas sim da desintegração ou crise do sistema social ou regime político que a fomenta e perpetua. Somente quando as estruturas que sustentam a irracionalidade coletiva vacilam, e a dolorosa dissonância entre a realidade e a narrativa imposta se torna insuportável, é que os indivíduos podem se desvencilhar do jugo da estupidez e trilhar o caminho da lucidez e da responsabilidade.
*José Manoel é pós-doutor em Engenharia, jornalista, escritor e advogado, com uma destacada trajetória na defesa de áreas cruciais como transporte, sustentabilidade, habitação, educação, saúde, assistência social, meio ambiente e segurança pública. Ele é o fundador da FerroFrente, uma iniciativa que visa promover o transporte ferroviário de passageiros no Brasil, e da Associação Água Viva, que fortalece a participação da sociedade civil nas decisões do município de Guarujá.